Um dia, eu tive nome e memória. Um dia, fui tocada pelo calor de mãos outras, escutei minha própria risada ecoar entre paredes vivas. Mas o tempo, esse escultor cego, desgastou-me os contornos. Agora, caminho entre os limiares do real e do que não ousamos nomear — um espectro de carne translúcida e vontades intactas.
As cidades por onde passo são caixas cinzentas, apinhadas de corpos curvados sobre telas que já não brilham. Os olhos — ah, os olhos! — perderam a cintilância da dúvida. E é essa dúvida que eu busco: o instante anterior ao desencanto. O lapso em que ainda eu acreditava que os sonhos tinham peso e forma, que podiam ser moldados com mãos sujas de terra ou tinta.
A cada passo, eu recolho fragmentos: um riso infantil esquecido num quintal vazio; uma frase escrita num caderno abandonado; o traço de um desenho incompleto no vidro embaçado de um ônibus. São ecos, pequenas fagulhas de um incêndio antigo, quase extinto.
Eu bebo dessas fagulhas como quem se hidrata com névoa. E nelas procuro destilar o elixir — não da juventude, nem da imortalidade, mas da imaginação viva, aquela que se esconde atrás da cortina pesada da indiferença.
Ainda não sei se encontrarei o que busco. Mas mesmo assim sigo. Pois fui humana um dia… e lembro, com dor e ternura, o que era sonhar.
Essa é, talvez, a condição fundamental da existência humana: ser ao mesmo tempo infinitamente consciente e irremediavelmente limitado. O espírito — essa centelha que sonha, questiona, deseja o absoluto — encontra-se enclausurado em um corpo que sente fome, cansaço, dor, medo. Há um abismo entre o que somos por dentro e o que conseguimos manifestar no mundo.
A carne impõe fronteiras, e nelas nascem as contradições: queremos o eterno, mas vivemos no tempo; ansiamos pela liberdade, mas somos condicionados por instintos, deveres e circunstâncias. A necessidade nos arrasta: precisamos comer, dormir, trabalhar, pertencer — e, por vezes, em meio a isso, esquecemos de existir em plenitude.
Talvez
a espiritualidade, a arte ou a filosofia não sejam fugas, mas
tentativas de lembrar ao espírito que ele ainda vive, apesar da
prisão. Não se trata de negar o corpo, mas de reconhecer que há
algo em nós que não se curva inteiramente ao peso do mundo. Algo
que persiste, que observa, que continua a perguntar:
“Quem
sou eu, além daquilo que me limita?”
Trago em mim a memória de ideias que ainda não nasceram, mas que já esmorecem antes mesmo de serem pronunciadas. Como herdeira de um tempo porvir, não carrego o passado em minhas costas, mas sim o fardo do que ainda não foi — de utopias desbotadas antes mesmo de encontrarem solo fértil.
A aurora do pensamento — esse instante luminoso em que a consciência desperta — é para mim um mito ancestral, como se eu chegasse tarde à festa do existir. No momento em que o pensamento acende sua primeira centelha, já é tarde demais. A luz é fraca, filtrada pelas camadas espessas da apatia, da distração, da ilusão. A modernidade, em sua pressa, substituiu a contemplação pelo consumo, a dúvida pela opinião, a escuta pelo ruído.
E assim, meu nascimento ocorre no entardecer da aurora — um paradoxo. Sou fruto de um tempo que já pressente a falência da razão como guia, mas ainda não encontrou outra estrela para seguir. O espírito, cansado de tanto pensar sem transformar, arrasta-se entre perguntas repetidas e respostas pré-fabricadas.
Que sentido há em herdar pensamentos cansados, corroídos pelo excesso de análise e pela escassez de vivência? Que liberdade resta ao espírito quando tudo já foi dito, distorcido, capitalizado? Ainda é possível um novo pensamento — puro, inaugural, desinteressado?
Talvez meu destino não seja o de reacender a aurora, mas o de aceitar o crepúsculo como campo fértil para a metamorfose. A luz do entardecer é suave, longa, reflexiva. Se a aurora representava a euforia da descoberta, o entardecer é o tempo da depuração, da síntese silenciosa.
Como descendente desse tempo paradoxal, não me cabe o heroísmo da vanguarda, mas a dignidade da guardiã: recolher as brasas que restam, proteger a centelha que ainda pulsa nas ruínas, dar tempo ao tempo para que o novo possa emergir — não da pressa, mas da paciência.
Pois talvez o pensamento não esteja morrendo. Talvez esteja apenas repousando, preparando-se, em silêncio, para um novo amanhecer.
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