Desde cedo, observa-se a construção de um universo interno paralelo, povoado por pessoas reais e personagens criados pela própria imaginação. Tal recurso pode ser compreendido como um mecanismo de defesa psíquico, uma forma de elaboração diante de contextos de dor ou imprevisibilidade. Ao criar narrativas próprias, a criança encontra um espaço seguro, no qual detém controle sobre os acontecimentos, em contraste com a realidade externa, muitas vezes vivida como ameaçadora.
O uso desse recurso não se confunde com estados delirantes. Há aqui a presença de imaginação ativa e consciente, processo que, na teoria psicanalítica e na psicologia do desenvolvimento, é associado tanto à função criativa quanto à sobrevivência emocional. Muitos indivíduos, diante de adversidades precoces, constroem mundos internos como forma de preservar a integridade psíquica, regulando ansiedades e angústias que não podiam ser contidas no ambiente real.
O dado dos sonhos recorrentes de fuga merece atenção clínica. Do ponto de vista simbólico, o ato de fugir sugere a permanência de conteúdos ligados a experiências de ameaça, perigo ou desamparo. O inconsciente, ao reproduzir a cena da fuga, evidencia que determinados aspectos emocionais permanecem em aberto, mesmo que, na realidade atual, o risco objetivo não exista mais. Isso se aproxima do que autores como Freud e Ferenczi apontam: experiências de angústia tendem a se reinscrever em diferentes formas, até que encontrem vias de elaboração.
Por outro lado, a persistência desse imaginário também revela a existência de recursos internos valiosos. O psiquismo não apenas suportou o impacto das vivências iniciais, como também desenvolveu meios criativos de organização interna. Nesse sentido, a questão clínica não é eliminar o “universo paralelo”, mas compreender o que ele representa e como pode ser transformado em instrumento de integração, em vez de permanecer como espaço exclusivo de fuga.
Do ponto de vista terapêutico, alguns caminhos possíveis são:
Exploração simbólica desses sonhos e memórias em psicoterapia, favorecendo a elaboração daquilo que permanece encapsulado no inconsciente.
Resignificação da imaginação, canalizando-a para produções criativas (escrita, arte, música), o que permite dar novo destino à energia psíquica antes voltada apenas à defesa.
Acolhimento das vivências passadas, reconhecendo que o refúgio interno, embora originado da dor, também expressa resiliência e capacidade de sobrevivência emocional.
Assim, a análise clínica aponta que o fenômeno descrito não é patológico em si. Pelo contrário, evidencia um psiquismo capaz de criar soluções diante da adversidade. O trabalho terapêutico, nesse caso, consistiria em transformar esse mesmo recurso em um instrumento de integração, permitindo que aquilo que antes foi fuga se converta em potencial de crescimento psíquico e criativo.